“For me every piece has a question. When you find a question you are on the right track.” (Monk, 2016)
“It's movement the right medium for me to work with? Then again, if I also use other mediums will they clarify and enrich what I'm doing, or will they consufe and clutter the picture?” (Burrows, 2010)
O QUE SER FAZER
PODE UMA DANÇA
UM CORPO
COMO EXISTIR
ONDE
HABITAR
“whenever we try to define “the body”, its identity, its proprietary relationship to its juridical counterpart (i.e. “the person”), all we will find instead will be but a series of transient, unfolding assemblages made out of differential components - more or less organic, more or less tangible, more or less linguistic, more or less sexual, more or less technological, more or less objectal, more or less subjectal, more or less anatomical, and always political.” (Lepecki, 2017)
Pode o corpo habitar qualquer outro tempo que não o agora? Pode ele ser o agente de mudança do passado infame e da perspectiva num futuro inadiável? “ninguém ainda determinou o que o corpo pode fazer” (Spinoza, 1994). Habitar o corpo é ser agora em tempo actual conectado com todos os outros tempos. Mover o corpo é criar o hoje, no hoje, pensar em movimento a procurar as respostas das perguntas que ainda não tenho e aquelas que já esqueci. Porque o corpo é também atlas, objecto arqueológico, mapa geográfico, monumento histórico, canto shaman, alforreca, ameba e molécula, é trazer do tempo e alimentar o advir. “Todos os corpos são, em certo sentido, datados, pertencendo a outras épocas que transportam com eles no seu presente.” (Gil, 2001)
Finalmente livre do dualismo Descartiano, o pó foi sacudido da bafienta dissociação entre corpo e razão. Ao legitimar o conhecimento apenas através da razão, o corpo lá tinha ficado, num segundo plano, no seu encargo de receptáculo, invólucro físico de uma mente imaterial, considerado apenas como uma espécie de massa com um conjunto de funções, todas elas inferiores ao pensamento analítico. Ser, neste sentido, não depende de corpo, pois para ser chega pensar.
Não era um corpo, tinha um corpo.
Mas o corpo sabia, e esperou, e não parou, e foi surrurrando a Espinosa o que Damásio confirmou. Que é uma substância contínua, uma energia inscrita de “circulações, substâncias, forças, pigmentações” (Ribeiro, 1997)
“The body never stops accumulating . . . every gesture, every word involves our past, present, and future.” (Trinh, 1989)
Olhos, músculos, mãos, sistema nervoso, pele, órgãos internos, cérebro contém em si todas as experiências, vivências, aspirações, medos e narrativas. O corpo pensa, sente, vive, recebe, exala e acomoda. O corpo também tem razão. O corpo é. Está intrinsecamente ligado ao presente, mas não só. É composto por uma teia complexa de vivências, memórias e imaginação. Estas linhas que a tecem - o presente, o passado e o futuro - que se tocam, sobrepõem, cruzam e circundam são como os genes que compõem a cadeia de ADN do “eu”. É possível reconhecer no corpo um conhecimento inerente e permanente. (ver Nóbrega 2008)
Mais, é composto por todos os outros corpos, fluxos, entres.
“The self is not a singular entity but a unified entity. The sense of I and other develops through a multiplicity of internal and external relationships. (…) explore the dance between the unified self and our sense of separate self and other” (Cohen,2019)
Que corpos ficaram para trás, tal como o corpo tinha ficado? Que corpos foram empurrados à força para o segundo plano? Que corpos já dançaram e ficaram esquecidos, dissociados, que corpos carrego no corpo? Que corpos continuam excluídos? Que corpos assumi? De que corpos me aproprio? Onde reconheço a interdependência de todos os corpos? “I argue that it is interdependence, not independence, and community, not physical autonomy, that should be supported and recognised as essential for sustaining a just society.” (Taylor, 2011 )
Tânia Carvalho 2020. Gentilmente cedida pela autora.
“não existe um corpo padrão. (…) Todos [os] corpos devem ser considerados forças criadoras de expressões que se podem designar como artísticas. Há, portanto, corpos nos quais é possível detetar diferenças de funcionamento e de comportamento, às vezes radicais. É por isso que se pode afirmar a existência de corpos multiculturais fracionados por diferenças que provocam tensões.” (Ribeiro, 1997)
Voltarei aos corpos.
Não esqueço.
Voltaremos lá, sempre.
Mas,
que danças podem esses corpos fazer? Que danças foram feitas? Que dança urge fazer agora?
“Como se constrói uma obra atual?” (Gil, 2001)
Vou atrás, que é presente, à dança que traz. Experimento o quotidiano, o comum, os gestos banais e os movimentos triviais. Vivo no corpo a arte que tenta ser vida vivida.
“reivindicaram para as suas danças a representação da vida real e para a sua linguagem uma técnica que pretendia doar ao corpo o realismo do seu comportamento em movimento.” (Ribeiro, 1997)










“he gave to a part of a body or to parts of bodies a special power of narration. The painting then speaks with several voices – like a story being told by different people from different points of view. Yet these ‘points of view’ can only exist in a corporeal space which is incompatible with territorial or architectural space. Corporeal space is continually changing its measures and focal centers, according to circumstances. It measures by waves, not metres. Hence its necessary dislocations of ‘real’ space.” (Berger, 2015)
Atribuo funções, executo tarefas, deleito-me na liberdade apesar de não conseguir deixar de me sentir ainda assim limitada, ainda assim, presa a um passado que por si só não encaixa.
Relembro que “A questão da definição do que é ou não dança é activada em momentos históricos em que um grupo de criadores questiona as capacidades expressivas e as ideologias subjacentes às convenções do movimento pré-existentes e os modelos de composição herdados” (Fazenda, 2007)
Relembro as reflexões de Julia Bryan-Wilson sobre aprender Trio A de Yvonne Rainer
“One does not sloppily move through a series of somewhat improvised or random motions; every tiny movement is prefigured, and it takes a great deal of concentration and work. Far from a free-form, unstructured terrain of unconstrained movement, Rainer’s instructions were a reminder that dance, though it can be deeply pleasurable, is equally a discipline, concerned with techniques of training and regimes to shape the body.“ (Bryan-Wilson, 2012)
Volto atrás.
Releio.
“Se libertarmos o corpo dos seus modelos habituais de movimento, se libertarmos o corpo da sua realidade construída segundo os sistemas reinantes e dominantes de objectivação, oferecer-lhes-emos a ocasião (…) de apreender o actual.” (Gil, 2001)
“A vida é uma obra de arte e a obra de arte é vida. Quanto mais sabemos, menos compreendemos, melhor. Saúdo o que acontecer a seguir. Fluxus é uma maneira de fazer as coisas, e um modo de vida e morte. Fluxus está dentro de ti, faz parte de como és. Fluxus é maior que tu. Fluxus fez uma arte do nada e vice-versa. Fluxus não faz sentido absolutamente nenhum. Fluxus ainda nem aconteceu. Fluxus é uma chatice para a arte." (Manifesto, 2015)
Volto.
Experimento
manifestos.
Interrogo possíveis reformulações em forma de manifesto:
Manifesto sim
Sim a mover-me e a deixar-me mover.
Sim a substâncias ou misturas que possibilitem uniões, fluxos, a juntarem-se, impulsionando combinações,
sim a transbordar.
Sim a ser “coisa, porosa e fluida, perpassada por fluxos vitais, integrada aos ciclos e dinâmicas da vida e do meio ambiente” (Ingold, 2012)
Sim à funcionalidade e à organicidade de todas as morfologias,
sim à disfuncionalidade e à discapacidade.
sim a reformular estes conceitos, a criar outros que esses nunca serviram.
Sim a criar novos significados para “dependente” e “independente”, “útil”, “necessário”.
Sim a ser linha, dar forma e não ser forma. “A forma é o fim, a morte, o dar forma é movimento, acção. O dar forma é vida.” (Klee, 1973)
Sim à dança “sem” escola de dança, sem treino, sem técnica, estratégia, método, procedimento, sistema, esquema, forma, artimanha, dispositivo de dança.
Sim a expressar o corpo a partir do corpo.
Sim a abraçar a incerteza e a improvisação e a não percorrer pontos percorridos mas a desenrolar-se no momento.
Sim aos actos contínuos, às substâncias contínuas.
Sim à fluidez a travessar o corpo, e ao corpo atravessar o mundo, sendo mundo.
Sim à escuridão, a mover na escuridão os movimentos invisíveis do pensamento.
Sim a habitar entre a vida e a morte. Sim ao que nos é comum a todos.
Sim a ser mundo, a juntar-se às linhas que o tecem e misturar-se nelas.
Sim à “arte que se enrola e se estende e cospe e pinga, e é pesada e crua e bruta e doce e estúpida como a própria vida…” (Ribeiro, 1997)
Sim a levantar da cadeira e voltar à acção. A envolver
sim
porque não existe matéria fixa, estável, estabelecida. Não existe matéria morta. A matéria é mutação, encontra-se sempre em movimento, é um fluxo constante.
Sim
à
FLUIDEZ
“Estou a pensar em como ninguém caminha sem que haja uma técnica de caminhar envolvida. Ninguém caminha sem que haja algo que suporte esse caminhar, algo exterior a nós próprios. E talvez tenhamos uma falsa ideia de que a pessoa sem “deficiência” é de alguma forma radicalmente auto-suficiente.”(Judith Butler, 2008)
“A arte não reproduz o visível; ela torna visível” (Klee, 1961)
manifesto-me
“ Qualquer coisa, de certa forma, é uma nuvem.” (Guldin, 2012)
A fluidez está neste corpo. A fluidez é ela. Explora ser massa de partículas de água que se deslocam em expansão. Procura mover-se assim. É água, mas não mar, não onda, não vai e vem, neste momento, é amorfa. Não é lago plano de fundos profundos ou oceano revolto de espuma branca. Com este último partilha a influência com que se deixa afectar pelo vento, deixa que este a molde, a transforme. Sente que a empurra a renomear a realidade.
“A natureza não tem sistema, tem simplesmente; é vida e ritmo, nasce de um centro desconhecido e dirige-se para um limite reconhecível. Por isso a observação da natureza é infinita” (Goethe, 2020)
Dá-se a ver a si mesma. Recolhe o que se lhe adapta. Pensa a partir do detalhe para se deixar mover, a partir da partícula, experimenta no corpo o que não entende. Tenta não o racionalizar. Falha. Intensifica o sabor de falhar e a sua impossibilidade.
Renomeia a sua realidade. Observa-se, convida-se a entrar e deixa-se trespassar-se. Renomeia-se a si também e faz-se “crer no mundo”. Observa. O detalhe, o pormenor, o indivíduo são o todo. Intensifica esse sabor. Crê no mundo mais um pouquinho, quase o suficiente para realmente crer.
“Todas as existências limitadas estão no infinito, mas não são partes do infinito; participam, isso sim, da infinitude.” (Goethe, 2020)
A nuvem é o corpo, é todos os corpos, é todas as massas que se deslocam, que se movem, conectadas, interdependentes e intraconsequentes. É constante e ininterrupto, o movimento e a sua percepção corpórea. Relaciona o corpo ao tempo, aos outros e ao espaço. Apropria-se desse espaço, ocupa-o para que este a ocupe. Expande-se na horizontal e desenvolve-se na vertical. Identifica-se nesse ponto, nessa superfície de toque e troca com o todo. Murmura que façamos a dança dos nossos corpos, que tal como ela não somos “nem fixas, nem voláteis ( não “desaparecem”), mas, como tudo na natureza, formas em permanente transformação” (Goethe, 2020), que exploremos se o que a identifica não são as partes separadas de cada mas o momento em que se tocam, se o movimento nasce da permeabilidade dos corpos, de onde lhe nasce a percepção e a partir daí cria, da sua capacidade aquífera.
(…) “If they reveal an ‘inner-ness’ it is that of the body, what lovers try to reach by caressing and by intercourse. In this context the last word takes on both a more literal and more poetic meaning. Coursing between.” (Berger, 2015)
“Paro, noto em toda a fluidez que acontece naquilo a que chamamos de quietude”
(Olsen, 2016)
A nuvem é a suspensão de minutas partículas de água e porção compacta de outros corpos de água. Está aberta ao exterior. É porosa. É a totalidade. É um rizoma, tem braços que surgem, se soltam, existem separadamente mas que nunca deixam de lhe caber. Flutua movendo-se bem assente sobre si mesma, apoiada no conjunto. É circular e helicoidal, ininterruptamente reconstituída e reformulada. É ela própria meio e princípio. Meio veículo e princípio de movimento. “Nuvens são pensamentos sem palavras.” (Mark e Strand, 1999). Ela dança o pensamento dos corpos que a observam, que a absorvem. Materializa-se em formas reconhecíveis, sem nunca ser forma. Responde à convocação e incentiva-nos a re-imaginar, a prestar atenção, a escutar em plenitude o que tem para dizer, a transfigurar modos de ver.
“Ver vem antes das palavras. A criança olha e reconhece antes de conseguir falar. (...) É o ver que estabelece o nosso lugar no mundo que nos rodeia, explicamos esse mundo com palavras, mas as palavras nunca podem desfazer o fato de estarmos cercados por ele. A relação entre o que vemos e o que sabemos nunca é estabelecida. Todas as noites vemos o sol a pôr-se. Sabemos que a Terra se está a afastar dele. No entanto, o conhecimento, a explicação, nunca se encaixa perfeitamente à vista.” (Berger, 2018)
Entrega-se às mutações. É performance. É efémera e nunca retorna. Toma formas subjectivas e dissolve-se ao toque. Assim, conhecer nuvens é como escrever sobre movimento, sobre a experiência do movimento, sobre a sensação do movimento, sobre a poética dos corpos em movimento, é como tentar agarrá-la, deitar-se nela e esperar que nos suporte. “Palavras sobre nuvens são elas próprias nuvens.” (Mark e Strand, 1999) Nem sequer a vemos a escapar-nos por entre os dedos como quando tentamos conter água em estado líquido nas mãos. Tocar nuvens desafia todos os nossos sentidos e o seu alcance. Não conseguimos ver a sua totalidade, ouvi-la, sentir-lhe o cheiro, podemos tocar-lhe mas não se retém, no entanto sabemos que está lá, algures no corpo, algures na pele, habita-nos debaixo da língua a reclamar de nós a veneração proposta por Goethe:
“conheçamos o que é possível ser conhecido e veneremos aquilo que não podemos conhecer. Não abdiquemos daquilo que não podemos conhecer. Temos que venerar. O acto de venerar permite um combate, um corpo a corpo (…) que nos eleva e por isso não se pode por de lado como despiciendo aquilo que nós não podemos conhecer, aquilo que está para além dos nossos limites (Molder, 2017)
Move-se connosco. Move-se na
experiência
é
Respiração
“Observar as nuvens, eu diria, não é ver a mobília do céu, mas vislumbrar o céu-em-formação, nunca o mesmo entre um momento e outro” (Ingold, 2012)
A respiração reconecta-me ao outro, à “mútua permeabilidade e conectividade” (Ingold, 2012), à certeza reconfortante da interdependência.
em mim
eu vejo o outro
e outro
e outro
enfim dezenas
trens passando
vagões cheios de gente
centenas
o outro
que há em mim
é você
você
e vocêassim como
eu estou em você
eu estou nele
em nós
e só quando
estamos em nós
estamos em paz
mesmo que estejamos a sós
Contranarciso de Paulo Leminski
<——
Respirar esse desconhecido, dançar no escuro, libertar da obsessão com a pureza da luz, do enlightenment, do branco, da certeza, deste branqueamento doentio que cega, de toda esta branquitude. “Luz como metáfora de conhecimento e liberdade na verdade não clarifica nada, nem liberta ninguém; principalmente ofusca e aprisiona.” (Lepecki, 2016). Dançar dissoluções das dictomias, interno-externo, eu-outro, fora-dentro, limite-infinito, viver nos entres, ser tons de cinzento, experimentar revoluções. Revoluções que não sejam transmitidas na televisão (ver Scott-Heron, 1971), que sejam do corpo e não aconteçam só no espaço entre estas coxas (ver Jones, 1999), que se não as dançar, não serão (ver Goldmand, 2006). Ser incompleto, incorporado, corpóreo, a partir do corpo, no corpo, noutro corpo que não este, a-sistemático, outro corpo que seja parte de todos os outros corpos e não desligado, desenraizado e esterlizado. António Pinto Ribeiro conta-nos a descida dos corpos aéreos nas artes performativas. Tenho a coragem? De fazer esse percurso, de descer à terra, à Terra, de sentar na cadeira, de descalçar as pontas, descer desse pedestal estereotipado de superioridade humana e chafurdar na lama e ser rã? Mais que descer para a cadeira, ser cadeira mesmo, ser madeira, assentar os quatro pés no chão e ir além do chão e virar tubérculo, crescer rizoma. Ser outros corpos, viver noutros corpos, existir a partir disso. Alimentar e não ser alimentado, ser alimento mesmo, sem pudor. Fechar a boca por um momento, não mastigar e re-mastigar o imposto e o novo, se for para mastigar que seja para ruminar mesmo, e mugir e fazer crescer 4 estômagos. Ir além dos possíveis para procurar todas as potencialidades.
Ser corpo nos entres e não corpo praga, corpo pandemia, corpo colonialista, corpo hegemónico, corpo lucro, corpo detrito incomestível pela minhoca, corpo forma.
Ser linha, eternamente linhas.
“tecer uma malha, o bordado de uma renda, o plexo do sistema nervoso, ou a teia de uma aranha. (…) os fios de uma teia de aranha não conectam pontos ou ligam coisas. Eles são tecidos a partir de materiais exsudados pelo corpo da aranha, e são dispostos segundo seus movimentos. Nesse sentido, eles são extensões do próprio ser da aranha à medida que ela vai trilhando o ambiente (…) Eles são as linhas ao longo das quais a aranha vive, e conduzem sua percepção e ação no mundo. “ (Ingold, 2012)
Tento venerar, o que não conheço, respiro.
Respirar esse desconhecido, dançar no
escuro
“na escuridão, pelo menos vemos a escuridão” (Sorensen, 2008)
A neurofisiologia da visão diz-nos que é exactamente sem luz que algumas células fotorreceptoras se desinibem, se agitam e reagem. São elas, em actividade na nossa retina que produzem o que vemos como escuro, que não é então apenas carência de luz mas sim uma dança complexa que envolve inibição, excitação e acção, movimento, performance. É outro tipo de visão aquilo a que chamamos escuro e percebê-lo é tudo menos um momento passivo.
“Perceber esse escuro não é uma forma de inércia ou de passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular que, no nosso caso, equivalem a neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes.” (Agamben, 2009)
São inerentes, pertencem-se. Luz e sombra.
No escuro deixo de discernir formas e posso finalmente começar a ver. As teias dos sons trespassam-me, os traços percorrem-me, permite-me largar o vício da interpretação submissa ao visual. Na penumbra dou espaço à imaginação, ao irreal não menos real, substituo a razão analítica pela razão sensorial, vejo imagens que não representam nada. São. Amplifico as possibilidades. No escuro perco a noção do eu no espaço e ganho espaço, expando a corporalidade para incluir outras. Esse “eu” largado no espaço, imerso no escuro, não está perdido, talvez seja mesmo necessário esquecer o que sei, não saber, desaprender, colocar tudo em suspenso, boiar.
À procura da dança desta época, meio de poética, meio de política.
“Como se constrói uma obra atual? Procurando o real na realidade, nos seus interstícios e intervalos, nos movimentos ínfimos que a atravessam e que as sua fraturas libertam. São movimentos não dirigidos, ainda não codificados, selvagens, caóticos. «Escutar a sua própria época» é receber esses signos subterrâneos, impercetíveis, livres para construir com eles o presente atual. Ora, o corpo é o dispositivo mais apto para detetar, apreender e acolher tais movimentos. O corpo é a caixa de ressonância mais sensível das tendências mais obscuras de uma época. (…) «Escutar a sua própria época» é procurar zonas de turbulência, zonas de caos, onde os movimentos subtis, ainda inclassificáveis, tomam origem. É procurar penetrar nessas zonas de riso e desposar o seu movimento - e devir, e criar.” (Gil, 2001)